“Ensaio sobre a Cegueira (Blindness)” de Fernando Meirelles
Antes de começar devo confessar que nunca li um livro de José Saramago. Apesar do reconhecimento nacional e internacional do escritor português, por algum motivo (talvez do subconsciente) nunca me senti atraído pela sua obra.
Desde cedo classifiquei (mesmo sem conhecer) a sua escrita como demasiado erudita e algo complexa, logo inacessível.
Talvez até mesmo de forma um pouco preconceituosa, assumia como referências as suas ideologias teológicas (ateísmo) e sócio-económicas (comunismo). Se daí advém o meu distanciamento à sua obra?
Penso que apenas Freud poderia explicar!
Contextualizado, foquemos-nos, então, no filme.
Rezam as crónicas que Saramago rejeitou várias propostas para a adaptação da sua obra à 7ª arte com receio de que esta não respeitasse o espírito e a mensagem da sua escrita.
Até que surgiu Fernando Meirelles, realizador brasileiro com provas dadas no cinema mundial (nomeadamente através de Cidade de Deus e, sobretudo, O Fiel Jardineiro), provando ter a coragem e a habilidade de adaptar uma história que dificilmente deixará alguém indiferente.
O passo seguinte seria escolher o elenco, e quando olhamos para a ficha técnica e vemos os nomes de Julianne Moore, Mark Ruffalo, Danny Glover, Gael Garcia Bernal, Alice Braga, Yusuke Iseya, etc, facilmente percebemos que se trata, realmente, de uma obra distinta!
Quando um homem asiático (Iseya) entra no seu consultório alegando ter ficado cego de um momento para o outro, o sério e confiante oftalmologista (Ruffalo) estava longe de imaginar o que iria acontecer. Um doença contagiosa causa gradualmente a cegueira a todos os habitantes de uma cidade (e não só) obrigando as autoridades a encerrar todos os “doentes” num hospital abandonado como medida para conter futuros contágios.
Abandonados e desprovidos de um dos sentidos, este grupo improvável terá que encontrar uma nova forma de organização. No entanto, a possível estabilidade é quebrada quando uma das camaratas, liderada por um ex-barman (Bernal), se apodera da comida e impõe uma nova ordem!
Aos restantes, a única esperança é a mulher do dr. (Moore), a única pessoa naquele espaço que (em segredo) ainda mantém todos os sentidos…
Verdadeiramente louvável o trabalho de Fernando Meirelles, na forma como expõe uma obra já de si bastante controversa e desconfortável. Independentemente dos sentimentos que possamos nutrir pelas situações retratadas, será necessário, antes de tudo, reconhecer o devido mérito ao realizador brasileiro na forma como conduz as personagens (e a nós mesmos).
Num crescendo de emoção e precisão, o simples facto de nunca perder o rumo e manter a dignidade possível, transforma o filme numa referência.
Quanto à obra de Saramago, ela irá certamente causar desconforto na maioria (pelo que tenho lido, sobretudo no sexo feminino). A sua visão muito drástica e primitiva do ser humano, expondo os seus piores defeitos e os seus pensamentos e comportamentos mais sórdidos, será bastante próximo de uma alegoria…
…mas seremos capazes de negar inequivocamente a sua autenticidade?